No filme “Meu Vizinho Adolf” (‘My Neighbor Adolf’), o Sr. Polsky (David Hayman), um judeu polonês (sobrevivente do Holocausto), sobrevive solitário em uma casa velha em ruínas, localizada ao pé de uma montanha, numa remota zona rural na América do Sul (Colômbia). O velho tem como atividade rotineira cuidar da sua amada roseira de rosas negras plantadas junto a cerca de madeira que delimita seu quintal, ler jornais e outras horas jogar xadrez sobre o tabuleiro empoeirado. Todas essas atividades remetem aos momentos alegres vividos em companhia da família, cruelmente aniquilada em pleno campo de concentração e de extermínio dos nazistas alemães.
Em mais um dia monótono de sua vida, a rotina e o silêncio são interrompidos por uma mulher desconhecida e um tanto quanto agressiva (Olivia Silhavy) que o procura ao seu portão para saber se ele tem conhecimento do número de telefone do proprietário da casa ao lado, pois o imóvel parece o lar perfeito para um distinto senhor de Buenos Aires vir morar. Mal-humorado, Polsky diz não saber e dá de ombros.
Mais tarde, o senhor polonês observa, por uma fresta da cerca de seu quintal, a movimentação intensa de pessoas falando em alemão, enquanto carregam a mudança do futuro vizinho casa adentro, tudo sob as ordens daquela mesma mulher que outrora fora pedir informação – e que Polsky acredita ser advogada (da Gestapo) do futuro vizinho misterioso.
Desse dia em diante, Polsky passa a perscrutar a rotina da casa ao lado até que em uma manhã, ao ir recolher o jornal do dia, nota que um galho de uma de suas rosas encontra-se quebrado e, ao agachar para analisar, toma um susto grande que o traumatiza ao dar de cara com o pastor alemão do novo vizinho latindo a poucos centímetros do seu rosto, por entre um vão de uma tábua solta da cerca. Ao se assustar, ele acaba sujando a mão no cocô do cão, a prova cabal que revela o responsável em quebrar o galho da rosa negra.
É a partir dessa “cagada” canina em mãos que o senhor Polsky vai até o portão do vizinho, o Sr. Herzog (Udo Kier), mostrar a ele toda a sua indignação com a obra de arte orgânica produzida em domicílio, além de estragar a sua estimada roseira de tamanho valor sentimental. Adiante à discussão entre os novos vizinhos, Polsky é notificado que terá que recuar a sua cerca por estar utilizando parte da metragem do terreno pertencente ao seu vizinho alemão, no entanto a roseira encontra-se plantada no pedaço de terra que pertence ao senhor Herzog, este agora terá a responsabilidade em cuidar da planta, pois replantar em outro lugar correria o risco dela morrer.
A relação entre os senhores vizinhos fica mais áspera quando – já com a lua iluminando a noite de um final de dia agitado – Herzog vê da janela o seu papel com as instruções de cuidado com as rosas negras ser descartado pelo novo vizinho. Dominado pela raiva, devido ao desprezo com as suas orientações escritas em próprio punho, ele de novo vai tirar satisfações; no calor da discussão o óculos escuro do alemão cai do seu rosto e neste momento eles se olham frente a frente, a um palmo de distância; Polsky, imediatamente, relaciona os penetrantes olhos azuis e a expressão facial do misterioso vizinho semelhantes aos do genocida Adolf Hitler. Após a pausa dramática, Herzog recolhe o óculos do chão, o veste, esbraveja por um pouco de paz e tranquilidade, ordena que o judeu polonês se afaste do seu portão e o fecha se recolhendo para dentro de sua nova casa.
Adiante a essa cena, Polsky em um desespero aterrorizante, de quem acabara de bater de frente com um monstro horripilante, faz rápidas ligações da imagem dos olhos de seu vizinho gravada em sua memória com fotos do ditador alemão, complementada com a manchete estampada na capa do jornal de que há poucos dias o criminoso nazista Adolf Eichmann fora sequestrado por agentes do Mossad (agência de inteligência nacional de Israel) na Argentina. Essa cena é o momento de terror do filme, pois é a única vez em que o alemão espia da sua janela o judeu, que da janela dele encontra, sem querer, com os olhos azuis sem vida do suposto Hitler por entre uma tempestade torrencial, acompanhada dos lampejos dos relâmpagos. Cenografia e fotografia bem produzidas que potencializam o clima de tensão da tomada.
Agora que Polsky não tem dúvidas que Herzog é Hitler, ele vai até o consulado israelense e lá tenta convencer a inexpressiva oficial de inteligência (Kineret Peled) o que para ele já está para além de uma evidência. A oficial acredita que a denúncia do senhor é mais uma das dezenas recebidas durante os anos por cidadãos que acham ter visto Hitler e diz que ele também pode estar enganado sobre ter encontrado o líder nazista.
Depois de ser praticamente desacreditado pela oficial, o senhor Polsky tem como missão encontrar o máximo de provas capazes de convencer não só a oficial que o atendeu, mas todos do consulado israelense, de que o maior dos nazistas encontra-se ainda vivo, disfarçado com uma barba longa, de óculos de sol e morando ao lado da sua casa. Essa obsessão contumaz segue firme por mais da metade do filme.
A aproximação de Polsky com Herzog, para obter as provas contundentes, vão no final surpreender a todos e ainda colocar em discussão a importância do perdão. Querer perdoar o próximo e aceitar o perdão pode ser a paz de espírito que lavará a alma diante da não aceitação que até então o afundava em um sentimento que corrói paulatinamente corpo e alma. Pode ser o perdão o recomeço de uma vida livre do peso que o ressentimento causou sem cessar.
É nesse contexto que “Meu Vizinho Adolf” (2022) nos narra a história carregada de comédia negra dramática envolta em mistério. O diretor Leon Prudovsky nos reserva um desfecho surpreendente entre os vizinhos Sr. Polsky e Sr. Herzog, ambos brilhantemente interpretados pelos atores de longa data, tanto no campo profissional quanto na estrada da vida. A empatia que eles transmitem através de suas interpretações – principalmente quando se contracenam – é considerado um spoiler quanto ao desfecho que desembocará na relação complexa entre os simpáticos senhores de idade.
Mas calma, porque muitas pedras vão rolar até que eles se expliquem por meio das revelações contadas, em histórias passadas amargas e de imposições cruéis vividas por ambos, durante um período da história da humanidade em que muitos seres humanos passaram a ser desumanos, diante do grande poder que poucos tinham para fazer o mal ao delegar obrigações facínoras na vida de muitas pessoas inocentes que acarretaram em morte ou então em traumas incapazes de se curar por completo, não importa o tempo que passar.
O roteiro co-escrito por Dmitry Malinsky faz com que a trama caminhe por uma miscelânea de gêneros cinematográficos, onde é facilmente identificado o contexto histórico em que está atrelado – e estampado no título “Meu Vizinho Adolf”, ironicamente – onde prevalece o drama e a comédia agridoce caracterizado pela originalidade inteligente e de momentos a considerar surreais, devido ao passado dos dois personagens que estrelam este longa.
A questão do diretor ser israelense (imigrou para Israel aos 13 anos) demonstra a coragem dele no destino final escolhido para a dupla de personagens antagônicos, por motivos óbvios em grande parte do filme – até o momento em que passam a conviver por mais tempo, mesmo que de maneira muitas vezes agressivas, mas que se “acertam” quando passam a abrir caminho para o passado manchado pelos horrores de uma guerra mundial e transitar em uma conversa sincera, sendo honestos um com o outro.
Talvez muitas pessoas que tiveram familiares ou conhecidos vítimas dos campos de concentração nazistas – na sua maioria composta por judeus -, ao assistir não gostaram do resultado final em que se transformou a relação entre os personagens. É no mínimo polêmico um representante judeu que sobreviveu ao Holocausto relacionar-se amigavelmente com um “inimigo” alemão.
Prudovsky é criativo em sua direção, existem elementos inseridos em cena que fazem a conexão entre o passado e o futuro dos idosos, assim como a fotografia de Radek Ladczuk contribui para criar cores e iluminação alinhados à estética temporal. O destino criado para os personagens de “O Meu Vizinho Adolf” eleva ainda mais a importância da ação do perdão, contemplado de maneira cristalina nos momentos finais do filme, durante uma conversa franca entre os senhores Polsky e Herzog. O enquadramento fechado da câmera de Prudovsky, no momento do diálogo que antecede o desfecho final, capta as profundas expressões de emoção dos atores em meio ao brilho dos olhos marejados e carregados de sentimento desabrochando em ambos, nesta cena marcada pela busca de redenção.
Abro um parênteses aqui para destacar as metáforas utilizadas sutilmente pelo diretor em várias cenas, seja pela composição da cenografia ou pela representação expressadas pelos personagens; uma delas é quanto ao sentimento de viver preso no passado, carregado ao longo do filme pelo Sr. Polsky. No início, há uma cena em que ele faz um grande esforço para urinar (retenção urinária); lá para o final do longa – após uma conversa reveladora com o Sr. Herzog – Polsky consegue finalmente, agora aliviado, urinar continuamente.
Esta produção é uma colaboração dos países de Israel, Polônia e Colômbia; também são três o número de idiomas falados durante o filme, ouve-se o alemão, o inglês e também um pouco do espanhol. É curioso relatar aqui que os atores David Hayman e Udo Kier já tiveram a experiência de interpretar personagens semelhantes aos vividos aqui pelos senhores Polsky e Herzog: em 2008, Hayman foi uma vítima do Holocausto em “O Menino do Pijama Listrado” e no ano de 2020, Kier atuou como Adolf Hitler na série de TV “Hunters”.
Este filme é uma surpresa e tanto ainda mais no pano de fundo histórico em que o enredo está inserido. Ao assistir você nem irá notar o tempo transcorrer, pois além de ser um longa-metragem com uma história que pode parecer bizarra – se olhada por uma visão sem qualquer objetivo além do sentimento secular, mundano, o que é muito difícil, mas possível -, a presença dos atores veteranos contribuem para uma história que nos faz rir, ficar em estado de tensão, emocionar e surpreender diante do poder do diálogo e do perdão redentor. Perdoe ou aceite o perdão antes que você não tenha tempo de se arrepender. Perdoar é amar a Deus, ao próximo e a si mesmo.
Inté, se Deus quiser!
NOTA:
Trailer
Pôster
Curiosidades sobre Meu Vizinho Adolf
Udo Kier realmente interpretou Adolf Hitler na série de TV “Hunters” (2020);
David Hayman, que interpreta um sobrevivente do Holocausto neste filme, interpretou uma vítima do Holocausto em “O Menino do Pijama Listrado” (2008).
Ficha técnica
Diretor: Leon Prudovsky. Roteiro: Dmitry Malinsky e Leon Prudovsky. Produtores: Juan Beltran, Julieta Biasotti, Tsachi Cohen, Diego Conejero, Stanislaw Dziedzic, Leon Edery, Moshe Edery, Kainan Eldar, Laura Franco Franco, Julio César Gaviria, José María Landi, Juan Pablo Lasserre, Haim Mecklberg, Konrad Mikolajczyk, Ygal Mograbi, Paulo Restrepo S, Klaudia Smieja, Bogna Szewczyk, Estee Yacov-Mecklberg Diretor de fotografia: Radek Ladczuk. Editor: Hervé Schneid. Design de produção: Juan Carlos Acevedo. Figurino: Elizabeth Cardona e Analia Manouelian. Cabelo e maquiagem: Lorena García e Manuela Muñoz. Música: Carlos Arcila, Sam Biggs, Paul Daniel Lucas e Juan Pablo Silva. Elenco: David Hayman, Udo Kier, Olivia Silhavy, Kineret Peled, Jaime Correa, Tomasz Sobczak, Danharry Colorado, Eyvar Fardi, Dorian Alexis Zuluaga Seguro, Lukas Herbert Blei, Daniel Andreas Schmutte, David Mejia, Rafael Gallo, Juan Carlos Ruiz, Beatriz Ramirez, Abel Alzate, Yaron Becker, Radoslaw Chabowski, Maria Gregosiewicz, Michelle Grunwald, Maria Juzwin, Paulina Dulla Latos, Dorota Liliental, Igor Solecki, Olivia Steafnow, Jan Szugajew e Szymon Wisniewski.
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