Resenha do filme Ainda Estou Aqui (2024, Walter Salles)

Não espere assistir “Ainda Estou Aqui” (2024) e ver a história de Rubens Paiva (Selton Mello) e todo o destrinchar do misterioso desaparecimento e posterior assassinato sob as sombras da ditadura militar. Trata-se aqui de um filme dramático que mostra a consequência da tragédia instalada no núcleo da família Paiva e como tudo foi encarado e enfrentado pela matriarca Eunice Paiva (Fernanda Torres). Isso perante os filhos e às autoridades, na busca da elucidação dos casos envolvendo os vários presos desaparecidos durante a opressão do regime militar.


O olhar do diretor Walter Salles para dentro da família Paiva é de uma intimidade e domínio técnico plausível, certo de quem conhece o chão que pisa. Aliás, aos 13 anos (1969), Salles era amigo de Nalu (interpretada por Bárbara Luz), uma das filhas do casal Paiva – o cineasta passou boa parte da adolescência na casa de aluguel da família Paiva, no Leblon, residência na qual o filme “Ainda Estou Aqui” toma como cenário principal da trama. 

A junção do conhecimento de direção de Salles com a acurácia dos profissionais responsáveis pelo design de produção (Carlos Conti), figurino (Helena Byington e Cláudia Kopke) e fotografia (Adrian Teijido), resulta neste longa-metragem de época que contempla as características setentista, mergulhado em uma riqueza de detalhes que proporciona uma sensação nostálgica para o espectador que viveu o período retratado na história.

Outro ponto alto do filme e que dita o ritmo das cenas, refere-se à trilha sonora do inglês Warren Ellis. O acerto está tanto nas trilhas instrumentais utilizadas para salientar o clima de uma determinada cena, quanto na trilha sonora que incluem clássicos interpretados por músicos que embalaram o ritmo brasileiro dos anos 1970: Erasmo Carlos, Gal Costa, Roberto Carlos, Os Mutantes, Tim Maia e Caetano Veloso são alguns dos nomes; sem falar das músicas internacionais.

Eunice e Rubens Paiva em um momento família com os cinco filhos na mesa de um restaurante.
Momento em que a família Paiva se reúne em volta da mesa de um restaurante, enquanto desfrutam da sobremesa e conversam sobre a viagem da filha Veroca para Londres.

Todas essas áreas que compõem a produção de “Ainda Estou Aqui” contribuem para o sucesso da obra cinematográfica. Quanto ao quesito artístico, o elenco é composto por uma linha de atores que mesclam juventude e experiência – esta encabeçada pela protagonista Fernanda Torres, que segue os passos ante a competência artística da mãe, Fernanda Montenegro, que também faz parte do elenco.

A presença estática de Montenegro, já nos momentos finais do filme, interpretando Eunice Paiva, na fase idosa e dominada pela doença de Alzheimer, parece ser mais um chamariz para atrair a atenção do público diante do tamanho e da importância da veterana atriz, que no Oscar de 1999 esteve indicada à categoria de “Melhor Atriz” por seu papel no filme “Central do Brasil” (1998), dirigido também por Walter Salles e que concorreu à estatueta de “Melhor Filme Estrangeiro” – infelizmente ambos saíram da premiação de mãos vazias. No entanto, pelo lado positivo, seus trabalhos ganharam visibilidade e reconhecimento internacional.

Lembrando aqui que a exaltação quanto ao empenho profissional de Fernanda Torres, parece ter esnobado a atuação pontual de Selton Mello. Aliás, Selton se parece e muito com o Rubens Paiva, palmas para o pessoal da maquiagem e também para o próprio ator, que infelizmente teve um tempo de tela insuficiente para o tamanho do seu talento e para o personagem.

Voltando ao enredo do filme, assim que Eunice Paiva muda com os filhos para a cidade de São Paulo, o roteiro caminha a passos largos, os pulos temporais que o diretor opta em filmar fazem das cenas a seguir parecer que o diretor abandonou a personagem lá no Rio de Janeiro e junto ao roteiro resolveu transformar Eunice Facciolla Paiva em um símbolo. 

Uma das filhas de Eunice e Rubens Paiva se levanta da mesa indignada, logo após a mãe anunciar que a família está de mudança para São Paulo.
Uma das filhas de Eunice e Rubens Paiva se levanta da mesa revoltada assim que a mãe anuncia que a família vai deixar o Rio de Janeiro de mudança para São Paulo.

Não estou sob ameaça dos milico, Deus me livre (e nos livre), mas confesso que o nome Rubens Paiva só chegou aos meus ouvidos poucas vezes, acredito ter escutado por aí, não me lembro onde. Eunice Paiva, nunca tive notícia, ou se bem que também pode ser que eu tenha escutado o nome dela em alguma chamada de telejornal, há muito tempo. Depois de assistir ao filme, Eunice Paiva ficou pintada em minha memória, já Rubens… continuo sem saber, mesmo depois de ver o filme que eu pensava ser sobre ele.

O diretor Walter Salles entrega uma história de narrativa simples, desprendida de recursos mirabolantes – do ponto de vista tecnológico e até narrativo -, compensado por uma aplicação técnica cirúrgica com interpretações sérias que não escorregam em nenhum frame. Uma boa parte da popularidade do filme, acredito, tem como responsável o investimento aplicado à divulgação e distribuição do filme pelos cinemas e mídias do mundo, o que de certo acaba virando assunto e resulta o popular boca a boca.

Apesar da emoção e do choro relatados por algumas pessoas nas mídias sociais, principalmente pela encenação de Fernanda Montenegro, sou sincero em dizer que não tive a mesma reação dos emocionados. Aliás, achei as cenas de Eunice Paiva com Alzheimer desnecessárias diante do contexto em que o enredo estava a contar até o momento em que a esposa de Rubens Paiva zarpa com os filhos do Rio de Janeiro para São Paulo.

É delicado escrever uma resenha crítica do filme “Ainda Estou Aqui” quando a sua opinião diverge daquelas que acham este longa-metragem uma obra de arte insuperável, assim como a frenética adulação a Fernanda Torres. Lembrando que nenhuma premiação de cinema, principalmente nessas últimas décadas, chancela o que é de fato o melhor – há muitas controvérsias -, vide Gwyneth Paltrow superando a própria Fernanda Montenegro na “71.ª cerimônia do Oscar” em 1999.

Não vejo “Ainda Estou Aqui” como um filme a conquistar 5 estrelas, mas logo se vê que trata-se de uma produção que tem sim quesitos técnicos e artísticos merecedores de elogios, direção consistente, principalmente se tratando de um produto nacional – uma vez que o cinema brasileiro tem muito o que melhorar e pode ser que este filme de Walter Salles seja um norte para as futuras produções brasileiras, desde que abandone a ideologia política e suas hipocrisias.

Inté, se Deus quiser!

 

NOTA: Nota do crítico - 3 estrelas (regular)

 

Trailer

 

Pôster

Pôster do filme "Ainda Estou Aqui" (2014).

 

Curiosidades sobre Ainda Estou Aqui

  • Fernanda Torres disse que o diretor Walter Salles cortou todas as cenas de choro dela no filme. Marcelo Rubens Paiva disse que sua mãe Eunice Paiva nunca chorou na frente da família e era muito contida, exatamente como é retratada no filme;
  • Filmado em filme de 35 mm em ordem cronológica;
  • Para o diretor Walter Salles, contar a história da saga da família Paiva foi uma missão pessoal, pois ele era amigo da família desde os 13 anos de idade. Salles passou mais de sete anos desenvolvendo o projeto.
  • Fernanda Torres perdeu cerca de 10 kg para o papel de Eunice Paiva, já que Eunice perdeu muito peso durante os 12 dias em que ficou presa.
  • Fernanda Torres afirmou que a decisão do diretor Walter Salles de filmar as cenas na mesma ordem do roteiro foi um divisor de águas, não apenas para que os atores se unissem como uma família de verdade, mas também para que se compreendesse de fato a escalada do medo e da opressão sentida pelos personagens à medida que os eventos se desenrolavam;
  • O filme foi lançado no Brasil no que seria o 95º aniversário de Eunice Paiva, em 7 de novembro de 2024. O ano de seu lançamento também marcou o 60º aniversário do golpe de Estado brasileiro de 1964;
  • Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, e Fernanda Montenegro assume o papel de sua personagem mais velha. Na vida real, Montenegro é a mãe de Torres;
  • Primeiro filme brasileiro a ser indicado a Melhor Filme no Oscar. Além disso, Fernanda Torres se tornou a segunda brasileira indicada a Melhor Atriz, seguindo sua mãe, Fernanda Montenegro, em 1999, por “Central do Brasil” (1998), que também foi dirigido por Walter Salles;
  • Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice Paiva e Rubens Paiva e autor do livro no qual o filme é baseado, ficou paraplégico em 1979, aos 20 anos, depois de mergulhar em um lago raso e fraturar a quinta vértebra cervical. Embora o filme não explique isso diretamente, essa é a razão pela qual a versão mais velha do personagem está em uma cadeira de rodas;
  • Selton Mello teve que se submeter a uma dieta rigorosa para ganhar 20 kg para o papel de Rubens Paiva;
  • Fernanda Torres achou engraçado quando ouviu alguém dizer, após uma exibição internacional, que a equipe de maquiagem fez um trabalho incrível ao envelhecê-la para a sequência final do filme. Obviamente, a pessoa não sabia que era Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, que interpretava a idosa Eunice. Ela afirmou que ficou lisonjeada com a confusão, pois as duas são muito parecidas;
  • Os recortes de Eunice no filme incluem uma capa da revista Veja da vida real, com uma foto do verdadeiro Rubens Paiva;
  • Escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para concorrer à categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2025, tornou-se o quinto filme brasileiro a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional (anteriormente, Melhor Filme em Língua Estrangeira). O indicado anterior foi “Central do Brasil” (1998), também dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Montenegro;
  • De acordo com Marcelo Rubens Paiva, esse filme só foi possível porque a ex-presidente Dilma Rousseff – que sofreu impeachment em 2016 – instalou a “Comissão Nacional da Verdade” para permitir o acesso a documentos do governo militar passado. Somente com isso Paiva pôde escrever o livro no qual o filme se baseia;
  • A verdadeira casa onde a família Paiva morava ficava no bairro do Leblon (Avenida Delfim Moreira, 80), no Rio de Janeiro, e foi demolida em 1983 para ser transformada em um prédio. O filme foi rodado no bairro da Urca, em uma casa que se assemelhava à original;
  • O autor do livro Marcelo Rubens Paiva começou a escrever o livro de memórias “Ainda Estou Aqui”, de 2015, que inspirou o filme, porque queria registrar a história de sua família quando sua mãe começou a perder a memória;
  • Tornou-se o filme de maior bilheteria do Brasil desde a pandemia de COVID-19 de 2020 em um mês nos cinemas, com mais de 2,5 milhões de ingressos vendidos até então. Em março de 2025, mais de 5 milhões de ingressos foram vendidos no Brasil;
  • O diretor Walter Salles pediu às atrizes Luiza Kosovski e Valentina Herszage que decorassem elas mesmas o quarto de suas personagens. Elas usaram muitas referências de filmes e músicas da década de 1970 para projetá-lo;
  • O jornalista Cid Moreira pode ser ouvido no noticiário da TV durante uma cena. Apesar de Moreira estar ativo na época, a narração não vem de imagens de arquivo, mas foi gravada em 2023 especificamente para o filme;
  • Primeira colaboração entre Fernanda Montenegro e Walter Salles desde “Central do Brasil” (1998). Fernanda Torres e Salles colaboraram anteriormente em “Terra Estrangeira” (1995) e “O Primeiro Dia” (1998);
  • Primeiro longa-metragem narrativo do diretor Walter Salles em 12 anos. Seu longa-metragem anterior foi “Na Estrada” (2012);
  • Os pais de Fernanda Torres na vida real, Fernanda Montenegro e Fernando Torres, também foram detidos e interrogados pela ditadura militar brasileira em um centro de tortura quando eram produtores de teatro em ascensão. Sua mãe também recebeu ameaças de morte no teatro. Houve uma ligação dizendo que se ela subisse ao palco, seria morta;
  • No livro, o animal da família Paiva é um gato. No filme, é um cachorro;
  • É a segunda vez que Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello contracenam em um filme que se passa durante a ditadura militar no Brasil. Eles também estrelaram o filme “O Que é Isso, Companheiro?” (1997). Montenegro faz uma participação especial neste filme, interpretando uma informante, de modo que não interage com os outros atores;
  • A verdadeira Eunice Paiva apresentou brevemente um relato sobre o dia do desaparecimento de seu marido Rubens Paiva no curta-metragem “Eunice, Clarice, Thereza” (1979);
  • Essa é a segunda vez que o escritor Marcelo Rubens Paiva aparece como personagem de um filme, sendo que o filme anterior foi “Feliz Ano Velho” (1987), adaptação de seu romance de estreia, um best-seller. No entanto, nesse filme, o personagem principal foi inspirado em Paiva – chamado Mário -, portanto, esta é a primeira vez que ele aparece como personagem, também adaptando seu próprio romance para a tela;
  • Quinto filme brasileiro a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional (anteriormente Melhor Filme em Língua Estrangeira) – e o primeiro a ganhar. Os indicados anteriores foram “Central do Brasil” (1998), “O Que é Isso, Companheiro?” (1997), “O Quatrilho” (1995) e “O Pagador de Promessas” (1962);
  • Valentina Herszage baseou a personagem Veroca na cantora Gal Costa, que ela considerava provocadora e representava a juventude em um momento turbulento no Brasil na década de 1970;
  • Fernanda Torres recusou o papel da principal antagonista em “Vale Tudo” (2025) (remake de uma das maiores telenovelas do Brasil) para se concentrar na promoção desse filme;
  • Estreia no cinema de Guilherme Silveira e Cora Mora, que interpretam o jovem Marcelo Rubens Paiva, autor do livro do qual o filme foi adaptado, e Babiu, respectivamente;
  • A atriz Mariana Lima foi escolhida inicialmente para interpretar Eunice Paiva, mas teve que deixar o projeto devido a problemas de saúde;
  • Fernanda Montenegro e Fernanda Torres já atuaram juntas em “Casa de Areia” (2005), “Gêmeas” (1999) e fizeram participações especiais em “Fogo e Paixão” (1989);
  • Quando os filhos adultos da família abrem uma caixa e olham as fotos antigas da família, a música “Petit Pays”, interpretada por Cesária Évora, toca ao fundo. A letra menciona a palavra Saudade, que em português se refere a um estado emocional de saudade melancólica ou profundamente nostálgica;
  • A família do diretor Walter Salles era próxima da família Paiva. Salles tinha 13 anos na época da prisão de Rubens Paiva e permaneceu amigo por toda a vida de Marcelo, o mais novo dos cinco filhos da família;
  • Quando Eunice vai ao banco, ela olha para o retrato de um político na parede; trata-se de Emílio Garrastazu Médici, então presidente do Brasil.

 

Ficha técnica

Diretor: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega e Marcelo Rubens Paiva.
Produtores: Renata Brandão, Maria Carlota Bruno, Rémi Burah, Juliana Capelini, Thierry de Clermont Tonnerre, Martine de Clermont-Tonnerre, Masha Magonova, Lili Nogueira, Olivier Père, Lourenço Sant’Anna, David Taghioff, Rodrigo Teixeira, Guilherme Terra, Daniela Thomas e Suely Weller.
Diretor de fotografia: Adrian Teijido.
Editor: Affonso Gonçalves.
Direção de arte: Carlos Conti.
Figurino: Helena Byington e Cláudia Kopke.
Cabelo e maquiagem: Rodrigo Albuquerque, Marisa Amenta, Nani Gama, Gabriela Jovine, Viviane Lago, Nanda Leal, Zé Lucas, Luigi Rocchetti, Ana Simiema e Clarissa Vasconcelos.
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora Mora, Olívia Torres, Pri Helena, Humberto Carrão, Charles Fricks, Maeve Jinkings, Luana Nastas, Isadora Ruppert, Dan Stulbach, Camila Márdila, Daniel Dantas, Helena Albergaria, Thelmo Fernandes, Carla Ribas, Caio Horowicz, Maitê Padilha, Felipe Barreto, Antonio Furtado, Fagundes Emanuel, Bernardo Bibancos, Matheus Canto, Pedro Passarelli, Mônica Braga, Giulia Passarelli, Angela Chieregati Passarelli, Lucas Santos, Felipe Nehab, Félix Salles, Manoel Taborda, Theo Hoffmeister, João Gabriel Frapolli, Lucas Zampa, Luiz Bertazzo, Lourinelson Vladmir, Alexandre Mello, Augusto Trainotti, Daniel Ericsson, Renan Lima, Thadeu Matos, Hugo Camizão, Otavio Linhares, Leo Mac-Dowell, Rafaela Mell, João Junior, Denis Sauer, Marcelo Varzea, Aguida Aguiar, Daniel De Almeida, Alan Rocha, Philipp Lavra, Ângela Ribeiro, Camilla Flores, Luisa Taborda, Mayra Coelho, Ingrid Oliveira, Kauã Rodriguez, Laura Araújo, Cid Moreira e Carolina Borelli.

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